sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

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- ARTIGO: O infanticídio e o crime de exposição ou abandono e recém-nascido

Mauro Argachoff

Não raro, deparamo-nos com notícia veiculada pela imprensa, informando a morte de recém-nascido pela própria mãe. O tema ganha importância ao aplicador do Direito, tendo em vista que em um primeiro momento, procedendo-se a uma análise menos acurada, os crimes de infanticídio e abandono de recém-nascido com resultado morte parecem se confundir. 

Previsto no art. 134 do CP, o crime de “Exposição ou abandono de recém-nascido” assim vem definido:
“Art. 134. Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
§ 1.º Se o fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 2.º Se resulta morte:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. 
Trata-se, em verdade, de uma modalidade do delito de abandono de incapaz previsto no art. 133 do CP. 
Estamos diante de um crime próprio, somente a mãe podendo ser sujeito ativo, objetivando ocultar desonra própria e apenas o recém-nascido pode ser sujeito passivo.
Admite a prática nas modalidades comissiva e omissiva. Por fim, possui uma finalidade específica que é a ocultação de desonra própria.
Por sua vez, o crime de infanticídio, previsto no art. 123 do CP, encontra a seguinte descrição: 
“Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:Pena – detenção, de dois a seis anos”. 
Quando do estudo da questão dos critérios psicológico e fisiopsicológico, observa-se que no primeiro leva-se em consideração o motivo de honra (honoris causa), ao passo que no segundo, o desequilíbrio fisiopsíquico.
Pode-se notar que o crime de infanticídio exclui o fator honoris causa de sua descrição típica; contudo, o legislador não agiu da mesma forma quando da tipificação do delito de exposição ou abandono de recém-nascido.
Inegavelmente, concluímos então, que ao falarmos de crime contra a vida de recém-nascido, não foi abandonado por completo o critério honoris causae.
Flamínio Fávero, debruçando-se sobre o assunto em questão, entendeu ser a exposição ou abandono de recém-nascido uma “verdadeira espécie de infanticídio”, afirmando tratar-se de um “homicídio honoris causa, com a mesma penalidade do infanticídio, praticado sob a influência do estado puerperal”.(1)
Discordando totalmente de tal assertiva, Noronha afirma não assistir razão a Fáveroao equiparar os delitos de infanticídio e exposição ou abandono de recém-nascido, mesmo porque neste último inexiste o animus necandi.(2)
Evidentemente que os vários motivos que podem levar uma mulher à prática do infanticídio também poderão conduzi-la ao abandono do recém-nascido. Contudo, neste último, a genitora não objetiva a morte do filho e sim expô-lo ou abandoná-lo, sendo que o resultado morte sobrevém a título de preterdolo.
Com relação aos verbos “expor” e “abandonar”, embora alguns grandes doutrinadores como Hungria e Fragoso entendam serem sinônimos, preferimos a posição de Cezar Roberto Bitencourt, baseada na doutrina francesa, suíça e alemã, em que, na “exposição”, interrompe-se a guarda, mas não a vigilância, ao passo que no “abandono” cessam uma e outra.(3)
O fato é que, considerando-se que no abandono cessam a guarda e a vigilância, mesmo o resultado morte advindo a título de preterdolo, não podemos deixar de observar em que condições se dá tal conduta. Digo isso porque, ocorrendo o abandono em um local absolutamente desocupado, deserto, sem acesso, parece ficar claro que o dolo não seria simplesmente de rejeição, mas sim de causar a morte do recém-nascido.
Em tal situação, difícil encontrar distinção entre os delitos previstos nos arts. 123 e 134 do CP, vez que ambos objetivavam a morte da criança. Há quem entenda, inclusive, que no art. 123 estamos diante da figura do infanticídio por ação, ao passo que no art. 134 está configurado o infanticídio honoris causae por omissão.(4)
Não enxergamos dessa forma, mesmo porque existe a possibilidade da prática do delito previsto no art. 123 do CP na modalidade omissiva, deixando, por exemplo, a genitora de remover as mucosas ou não promovendo outros cuidados que o recém-nascido necessita como a ligadura do cordão umbilical e a adequada alimentação.
A questão que se coloca é: por que o legislador suprimiu o critério honoris causaepara o infanticídio e o manteve na exposição ou abandono de recém-nascido?
Ao que parece, a resposta não pode ser outra a não ser aquela que se relacione com a finalidade da conduta. O art. 134 do CP visa tutelar a ação da mãe que não objetiva a morte de seu filho, mas apenas abandoná-lo. Trata-se de injusto de perigo. Pratica tal conduta por diversos motivos, como, por exemplo, ser menor de idade, solteira residindo com os pais, ser a criança fruto de uma relação extramatrimonial, ou qualquer outro que esteja ligado diretamente a sua honra sexual e à boa fama que goza perante a sociedade. Isso em nada se relaciona com o estado puerperal. O que está em jogo aqui é puramente o fator honra e o resultado almejado é bem menos grave do que o previsto no infanticídio (apesar das penas idênticas), embora a morte possa também ocorrer, mas somente a título de culpa e nunca de forma desejada.
Considerando que a honra salvaguardada é de natureza sexual, o art. 134 do CP não pode apresentar como sujeito ativo a meretriz ou mulher de vida sexual manifestamente desregrada, por não haver, nesses casos, vida sexual a ser preservada.(5)
Tal restrição já não mais é encontrada no delito de infanticídio. A exclusão do critério psicológico com referência ao tipo, não permite que se faça qualquer diferenciação com relação à autora do delito no que diz respeito ao seu estilo de vida sexual, visto levar-se em consideração apenas a influência do estado puerperal no momento da conduta. Aliás, tal fato foi de grande importância para a adoção do critério fisiopsicológico, qual seja, evitar-se que prostitutas ou mulheres com comportamento sexual mais liberal não fossem alcançadas pelo privilégio, enquanto outras, muitas vezes desonradas, mas não sexualmente, fossem beneficiadas.
Pelas considerações expendidas podemos então concluir que, efetivamente, o fator honra sexual ainda tem forte influência no Código Penal, inobstante a evolução dos costumes, emancipação das mulheres etc.
O quadro que se apresenta então parece ser o seguinte: não podemos conceber que uma mãe ceife a vida do próprio filho indefeso apenas e tão somente para salvaguardar sua honra. Adotamos então o critério fisiopsicológico para que a influência do estado puerperal justifique o abrandamento da reprimenda; por outro lado, não se tratando de pôr fim à vida da criança, mas sim abandoná-la para “livrar-se do problema”, permite-se que a honra seja invocada como justificativa para uma pena menor. A honra sexual pode não ser o bastante para matar, mas o suficiente para abandonar. Embora pareça de extrema frieza, a conclusão a que chegamos é essa.

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Notas:
(1) Fávero, Flamínio. Medicina legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991, p. 767.
(2) Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, v. 5, p. 249.
(3) Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 14. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1, 2 e 3, p. 247-248.
(4) Medici Filho. Atugasmin. O infanticídio no novo Código Penal.Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 140, p. 360-361, 1942.

(5) Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 1998, v. 2, p. 135.

Mauro Argachoff
Mestre em Direito Penal pela USP.
Delegado de Polícia no Estado de São Paulo.

Professor de Direito Penal do Complexo Damásio de Jesus.


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